O Supremo Tribunal
Federal decidiu, nesta quinta-feira (5/5), equiparar as relações entre pessoas
do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres. Na prática, a união
homoafetiva foi reconhecida como um núcleo familiar como qualquer outro. O
reconhecimento de direitos de casais gays foi unânime.
Os ministros
Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso divergiram em alguns aspectos
da fundamentação da maioria dos colegas, mas também os acompanharam no ponto
central. A condenação da discriminação e de atos violentos contra homossexuais
também foi unânime.
Os ministros Marco
Aurélio e Celso de Mello ressaltaram que o caráter laico do Estado impede que a
moral religiosa sirva de parâmetro para limitar a liberdade das pessoas. Em seu
voto, Marco
Aurélio destacou o papel contramajoritário do Supremo citou a decisão
tomada em relação à Lei da Ficha Limpa ao lembrar que as normas
constitucionais de nada valeriam se fossem lidas em conformidade com a opinião
pública dominante.
Já Celso de
Mello afirmou que o Estado deve dispensar às uniões homoafetivas o mesmo
tratamento atribuído às uniões estáveis heterossexuais. Não há razões de peso
que justifiquem que esse direito não seja reconhecido, frisou o ministro.
"Toda pessoa tem o direito de constituir família, independentemente de
orientação sexual ou identidade de gênero", disse.
A interpretação do
Supremo sobre a união homoafetiva reconheceu a quarta família brasileira. A
Constituição prevê três enquadramentos de família. A decorrente do casamento, a
família formada com a união estável e a entidade familiar monoparental (quando
acontece de apenas um dos cônjuges ficar com os filhos). E, agora, a decorrente
da união homoafetiva.
Ao julgar
procedentes as duas ações que pediam o reconhecimento da relação entre pessoas
do mesmo sexo, os ministros decidiram que a união homoafetiva deve ser
considerada como uma autêntica família, com todos os seus efeitos jurídicos. Os
ministros destacaram que é importante que o Congresso Nacional deixe de
ser omisso em relação ao tema e regule as relações que surgirão a partir da
decisão do Supremo.
O julgamento foi
retomado nesta quinta-feira depois de ser suspenso na quarta, após o voto do relator
das duas ações, ministro Ayres Britto. O ministro votou no sentido de dar
interpretação conforme a Constituição para o artigo 1.723 do Código Civil. A
norma define a união estável como aquela "entre o homem e a mulher,
configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família".
Pelo voto do
ministro, que foi acompanhado integralmente por seis de seus colegas, deve
ser excluída da interpretação da regra qualquer significado que impeça o
reconhecimento de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Em voto de
cerca de duas horas, o ministro frisou que a união homoafetiva não pode ser
classificada como mera sociedade de fato, como se fosse um negócio mercantil.
Além de uma longa
análise biológica sobre o sexo, Britto registrou que o silêncio da Constituição
sobre o tema é intencional. "Tudo que não está juridicamente proibido,
está juridicamente permitido. A ausência de lei não é ausência de direito, até
porque o direito é maior do que a lei", afirmou.
Um só afeto O ministro Luiz Fux ressaltou que, se
a homossexualidade é um traço da personalidade, caracteriza a humanidade de
determinadas pessoas. "Homossexualidade não é crime. Então porque o
homossexual não pode constituir uma família?", questionou Fux.
O próprio ministro
respondeu a pergunta: "Por força de duas questões abominadas pela
Constituição Federal, que são a intolerância e o preconceito". Segundo
Fux, todos os homens são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza. Assim, "nada justifica que não se possa equiparar a união
homoafetiva à união estável entre homem e mulher". O ministro ainda
ressaltou que "se o legislador não o fez, compete ao tribunal suprir essa
lacuna".
A ministra Cármen
Lúcia destacou que a Constituição Federal não tolera qualquer
discriminação. "Contra todas as formas de preconceitos há a Constituição
Federal", disse.
O ministro Joaquim
Barbosa ressaltou que cabe ao Supremo "impedir o sufocamento, o desprezo e
discriminação dura e pura de grupos minoritários pela maioria
estabelecida". De acordo com ele, o princípio da dignidade humana
pressupõe a "noção de que todos, sem exceção, têm direito a igual
consideração".
Na sessão de
quarta-feira, Britto assentou que se não há lei que proíba, a conduta é lícita.
De acordo com o ministro, a Constituição entrega o "empírico emprego das
funções sexuais ao arbítrio das pessoas". E o Estado brasileiro veda o
preconceito por orientação sexual. "As normas constitucionais não
distinguem o gênero masculino e feminino", frisou Britto. Ou seja, não
fazem distinção em relação a sexo. Logo, não fazem também sobre orientação sexual.
Britto disse
também que união homoafetiva só seria vedada se a Constituição fosse expressa
nesse sentido. "O que seria obscurantista e inútil", emendou. Segundo
o ministro, a família, em sua concepção, é o núcleo doméstico, tanto faz se
integrada por um casal heterossexual ou homossexual.
O ministro ainda
ressaltou que não se pode alegar que os heterossexuais perdem se os casais
homoafetivos ganham o direito ao reconhecimento jurídico de suas relações. Só
se restringe um direito para garantir outro. Quem perde com o reconhecimento da
união homoafetiva? Ninguém.
Divergências pontuais Mesmo os ministros que divergiram do
voto de Britto, o fizeram por questões pontuais. O ministro Ricardo
Lewandowski, primeiro a não acompanhar integralmente o relator, reconheceu os
direitos dos casais homossexuais, mas de forma um pouco mais restrita.
De acordo com o voto de
Lewandowski, os homossexuais têm os mesmos direitos dos casais convencionais
que vivem em união estável, exceto aqueles típicos das relações entre um homem
e uma mulher.
O ministro não
explicitou os direitos típicos de heterossexuais. Mas, pelo seu voto, pode-se
supor que o casamento civil estaria proibido na união homoafetiva. Ele,
contudo, ficou vencido.
Lewandowski também
registrou que a decisão deveria valer até que o Congresso Nacional regulasse o
tema. O ministro resgatou as discussões da Assembleia Nacional Constituinte em
torno do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição.
A norma diz
textualmente que a união estável se dá entre homem e mulher. O ministro
mostrou, a partir das discussões, que isso foi uma opção clara do legislador.
De acordo com Lewandowski, a decisão do STF ocupa o espaço do Congresso
Nacional. Então, o preenchimento da lacuna teria de ser provisório.
Para o ministro
Gilmar Mendes, o tema em julgamento diz respeito à dignidade dos indivíduos.
"A pretensão que se formula tem base nos direitos fundamentais a partir
dos princípios da igualdade e da liberdade", disse. De acordo com o
ministro, é necessário reconhecer os direitos de casais formados por pessoas do
mesmo sexo por uma questão de dignidade humana.
Mas o ministro fez
observações sobre os fundamentos da decisão do STF. Para ele, pretender regular
a união homoafetiva como faria o legislador é exacerbar o papel do Supremo.
"Fazermos simplesmente a equiparação pode fazer com que estejamos a
equiparar situações que vão revelar diversidades", disse o ministro. Por
isso, Gilmar Mendes acompanhou Britto no mérito, mas se limitou a reconhecer a
existência da união homoafetiva sem se pronunciar sobre outros desdobramentos
possíveis.
Peluso afirmou que
"na solução da questão posta, só podem ser aplicadas as normas
correspondentes que no Direito de Família se aplicam à união estável entre
homem e mulher". Mas nem todas, disse o presidente do Supremo, porque não
se tratam de relações idênticas, mas de equiparação.
"A partir
deste julgamento, o Legislativo tem de se expor e regulamentar situações que
irão surgir a partir do pronunciamento da corte. É necessário regulamentar a
equiparação. Aqui se faz uma convocação para que o Congresso Nacional
atue", concluiu Peluso.
Família de fato e de
direito Nas sustentações orais de
quarta-feira, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, afirmou que a
ação visa reconhecer que todas as pessoas têm os mesmos direitos de formular e
perseguir seus planos de vida desde que não firam direitos de terceiros. E,
para ele, o reconhecimento da união homoafetiva fortalece a família.
De acordo com
Gurgel, a discriminação em relação aos casais formados por pessoas do mesmo
sexo compromete a capacidade dos homossexuais de viver a plenitude de sua opção
sexual. "Embaraça o exercício da liberdade e o desenvolvimento da
identidade de um número expressivo de pessoas", disse.
O PGR citou dados
do IBGE, de acordo com os quais há 60 mil casais homossexuais no país. "E
o número é certamente maior do que o dos dados oficiais. A união entre pessoas
do mesmo sexo enquadra-se no plano dos fatos", afirmou.
O advogado Luís Roberto
Barroso, que representado o governo do Rio de Janeiro, subiu à tribuna para
falar que a história da civilização é a história da superação do preconceito. E
lembrou de casos em que homossexuais foram punidos apenas por declarar sua
opção sexual. De acordo com Barroso, o Supremo deve impor o mesmo regime
jurídico das uniões estáveis convencionais às relações homoafetivas. Entender
diferente, sustentou, significa depreciar e dizer que o afeto delas vale menos.
"Duas pessoas
que unem seu afeto não estão numa sociedade de fato, como uma barraca na feira.
A analogia que se faz hoje está equivocada. Só o preconceito mais inconfessável
deixará de reconhecer que a analogia é com a união estável", afirmou
Barroso. O advogado também frisou que o direito das minorias não deve ser
tratado necessariamente pelo processo político majoritário. Ou seja, pelo
Congresso Nacional. "Mas sim por tribunais, por juízes corajosos",
disse.
O advogado-geral
da União, Luís Inácio Adams, também defendeu o reconhecimento das uniões homoafetivas.
"O reconhecimento dessas relações é um fenômeno que extrapola a realidade
brasileira e o primeiro movimento de combate à discriminação que sofrem esses
casais vem do Estado, com o reconhecimento de benefícios previdenciários",
afirmou.
Outros seis amici
curiae defenderam as uniões homoafetivas. Contra o reconhecimento, falaram
dois amici. A principal foi a Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB). O advogado Hugo José Cysneiros, que representou os bispos,
começou com argumentos pesados. "Poligâmicos, incestuosos, alegrai-vos.
Afinal, vocês também procuram afeto", disse em contraponto às sustentações
que pregaram que o afeto não pode ter distinção entre homossexuais e
heterossexuais. "A pluralidade tem limites", afirmou Cysneiros.
Quando passou aos
argumentos jurídicos, Cysneiros sustentou que "uma lacuna constitucional
não pode ser confundida com não encontrar na Constituição aquilo que eu quero
ler". De acordo com ele, a CNBB não entrou nos processos para "trazer
seu catecismo, nem citar textos bíblicos", mas para pedir "o
raciocínio, a análise, tendo como referência o texto constitucional".
Cysneiros disse
que com o texto legal claro no sentido de que a "união estável se dá entre
o homem e a mulher", não cabia espaço para interpretações. E concluiu
dizendo que a depender do resultado do julgamento, portar uma Bíblia poderia
ser considerado crime. Outros sete amici curiae foram admitidos na
ação, mas não fizeram sustentações orais.
Pedido duplo O julgamento do Supremo foi
feito com base em duas ações. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade e uma
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A ADPF foi transformada em
ADI depois que se verificou que um de seus pedidos, o reconhecimento de
benefícios previdenciários para servidores do estado do Rio de Janeiro, já
havia sido reconhecido em lei.
A ADI foi ajuizada
pela Procuradoria-Geral da República com dois objetivos: declarar de
reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e
estender os mesmos direitos dos companheiros de uniões estáveis aos
companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.
O argumento
principal da ADPF transformada em ADI, proposta pelo estado do Rio de
Janeiro, foi o de que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria
preceitos fundamentais constitucionais como igualdade e liberdade e o princípio
da dignidade da pessoa humana. Os dois pedidos foram acolhidos,
No final do
julgamento, o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
Ophir Cavalcante Junior, comemorou o resultado. "A decisão do STF deve ser
aplaudida na medida em que confere uma interpretação à Constituição compatível
com os princípios da igualdade e da dignidade do ser humano. Trata-se de um
fato presente na vida da sociedade brasileira e que merecia reconhecimento pelo
Judiciário no sentido de garantir os direitos decorrentes de uma situação
semelhante a da união estável constitucionalmente previsto", afirmou.
A Coser Advogados
também atua no Direito de Família, inclusive em processos de reconhecimento e
dissolução de uniões estáveis em Curitiba, fone: 41 3233-4109.